segunda-feira, 21 de junho de 2010

Águas férteis

Escrevi este texto no final do ano passado. Só hoje resolvi publicá-lo porque reflexões sobre o meu trabalho de ator vieram à tona dia desses e ao reler meu escrito, senti-me acalentado/instigado novamente. Se quiser conhecer mais dos meus textos acesse meu blog.

Danilo Castro

Ser ator, artista, ao contrário do que muitas equivocadas mentes estabelecem como conceito ingênuo, não é transviar-se em absoluta subversão. Ser ator é como ser um técnico especializado no funcionamento das mais difíceis engrenagens de uma maquinaria imensamente complexa. Talvez ainda pior, porque além de parafusos, alavancas, manivelas e roldanas, trabalhamos com uma energia inenarrável, com um encantamento indócil, com alguma força misteriosa que um dia me enlaçou, sufocou-me, e cá estou arriado, num estado de perdição incondicional, rendido, com os braços atados às costas.

 Ao ter contato com um dos mais preciosos nomes da pedagogia teatral contemporânea, o italiano Eugênio Barba, senti-me alvoroçado novamente, o alvoroço que outrora me encurralou em textos de um desabafo puro, retoma-me, re-doma-me e traz-me de volta ao contato com o mais íntimo de mim mesmo. Após a palestra de ontem eu (e mais um grupo de artistas sedentos pelas águas férteis desse homem estranho que me atordoou) refleti muito sobre meu trabalho na peça que estréio daqui a alguns dias. Então, por que não registrar? O “Revoar” é um filho impregnado das vísceras mais pegajosas que existem em mim, é uma expressão de conquista parida em repetidas doses de um embriagamento louco. É um vômito do qual tenho muito orgulho.

A atriz Julia Varley, dirigida por Barba no espetáculo “O Castelo de Holstero” mostrou-me com um refinamento deslumbrante, muito do que já sabia por livros, mas na prática se diluía no meio do meu amadorismo, comodismo ou qualquer outra coisa do tipo. Ela está o tempo todo num tom abaixo do que ela pode ir, um tom poético que não é, de nenhuma forma, o máximo que ela pode dar, porque quando menos se espera, feito cobra valente, ela dá o bote e surpreende além do que se pode imaginar.  Ela é duma leveza, duma calma, algo que me chocou, pois nela percebi o sumo mais puro da arte de ator. Sim, ela era a sereia e eu fui fisgado pelo seu canto, sou eu o seu peixe dourado. Queria eu no “Revoar” conseguir atingir esse estado de espírito, essa áurea, esse élan que me apregoou os olhos na sua poética. Sim, a técnica pode sim me transformar. Entretanto é necessário, dedicação, disciplina, porque brincar de transformar em verdade o que não existe não é fácil quando há uma entrega mútua, de mim para a arte, da arte para mim. É uma relação de honestidade e não de parasitismo, como infelizmente muita gente pensa e faz o teatro “acontecer”. Pensei sobre minhas limitações, pensei no quanto não tenho consciência sobre meu corpo, sobre o princípio dos impulsos (Jerzy Grotowski), sobre os isolamentos que posso propor em cena, sobre a ação que germina da coluna e reverbera no restante do corpo (Étienne Decroux), sobre o centro de energia que posso acumular no meu ventre, sobre as transições que posso oferecer para gerar um alerta contínuo no espectador diante das situações que vivo em cena, sobre a criação da ilusão para rompê-la (Bertolt Brecht), sobre a assimetria que meu corpo pode sugerir sempre para gerar conflito, despertar curiosidade, sobre as oposições para criar tensões (Vsevolod Meyerhold), sobre as ações físicas para preencher meus movimentos de sentido e revelar complexidade psicológica através do meu corpo (Constantin Stanislavski) e outra série de recursos que com técnica, muita técnica, são possíveis. Pensei sobre meu trabalho vocal, o quanto ainda posso melhorar minha dicção, anular meu sotaque, projetar minha voz utilizando a força do diafragma, sustentar nas vogais para reverberar meus sons, pronunciar cada palavra até o fim com verdade, com a força que cada uma merece, com a sombra que cada uma carrega. Trazer minha voz como um membro do meu corpo (Lúcia Helena Gayotto), cada frase como uma ação concreta, trazê-la orgânica à situação que eu me propor, trazê-la como parte de uma coisa só: o monômio corpo-voz.

“Revoar” é, sem dúvida, um dos meus maiores desafios, e hoje, uma semana antes de entrar em cena com a concepção mais livre que até então já participei, vejo-me desvencilhado, completamente vazado, absorvendo feito pedra porosa um mundaréu de possibilidades que outrora aprendi em teoria, mal exerci em prática e o tempo e a inadimplência me fizeram esquecer. Definitivamente, teatro é para quem é disciplinado. Se sempre quis ser bom no que me propus a fazer, preciso deixar o mundo de lado e pensar em dedicar minha vida à minha arte. É uma renúncia em nome do meu desenvolvimento para que o meu teatro seja de um refinamento indiscutível, para que o olhar alheio sinta-se como me senti diante de Julia.

Barba, com uma bela metáfora, dissertou sobre sua bigamia teoria-prática, trouxe sua teoria como uma pedra de gelo, mas afirmou que não há nada como a prática, que é água líquida, essencial, fresca, moldável, adaptável, surpreendente. Escrever é reinventar a experiência, mas nunca é a mesma coisa da experiência viva. Experiência é água líquida. E dessa água preciso beber, preciso deixar os cubos de gelo derreterem para banhar-me destemido nesse líquido puro, vital para manter-me bem na profissão que elegi como prioridade. Afora as mil e uma renúncias, ser ator é, acima de tudo, estudar muito e nunca se esquecer de quebrar as rochas gélidas que os livros nos propõem, porque hidratar-se é o segundo passo, e quando essa água também é alimento, hidratar-se é indiscutivelmente fundamental.

Danilo Castro
29.11.2009